Estrangeiros no mundo

 

Extraído de Vilem Flusser, "Estrangeiros no Mundo"
Fonte: O Estado de S.Paulo; 14.12.1991
http://www.estado.estadao.com.br/

 

 

 

      Nem todos temos pátria, mas todos moramos. Os clochards, sob as pontes de Paris; os nordestinos, nas favelas paulistanas; os ciganos, nas caravanas e, embora seja difícil admití lo, morava se em Auschwitz. Porque o homem é bicho que não pode viver, se não mora. Há varias maneiras de formular tal impossibilidade, mas a formulação informática e a menos sentimentalizante. Para captarmos informações, devemos dispor de redundâncias, porque sem redundância tudo que se capta não passa de ruído. E não é possível viver-se em mundo ruidoso, no caos. A morada e a redundância que me permite captar informações como também criá las a partir dos ruídos. Não morar, estar no caos, é loucura que leva ao aniquilamento.

 

      Fiz casa em Robion, para nela morar. Em seu núcleo está minha escrivaninha habitual com habitual desordem de papéis e livros. Em torno à casa, está a aldeia à qual me habituei, com seu correio, suas lojinhas, seu café, que se tornaram familiares para mim. Em torno de Robion, aqui e agora, se vislumbra ambiente cada vez mais in habitual, quanto mais me afasto do centro: a Provence, a França, a Europa, o Globo, o Universo em expansão, os abismos do Nada; o Ano passado as Pátrias perdidas, os abismos da História, da Pré história e os da Origem; o próximo Ano, o Futuro que se aproxima, o abismo do Futuro longínquo e o da Eternidade. Estou imerso em hábitos, em costumes, em redundâncias: moro. Assim, permito me captar informações e produzir informações com os ruídos que se apresentam. A dialética entre Robion e o mundo, entre o habitual e o aventuroso, entre o privado e o público é o que Hegel chamou de "consciência infeliz", ou seja a consciência humana. "Se ganho o mundo perco me, e se me ganho perco o mundo." Não posso insistir em Robion, sob pena de perder o mundo. Se estou no mundo, é porque moro e não insisto. O perigo da "abertura" é a perda da morada, a "senilidade", a perda da viagem. Ambos devem ser resistidos. Mas além da dialética externa entre morada e mundo, há a dialática interna da morada. O costume, que permite perceber informações, passa, ele próprio, despercebido. O habitual, que permite transformar ruídos em informações , não informa. Percebo em minha escrivaninha apenas os papéis e livros que chegaram pelo correio, mas não a desordem habitual que sobre ela reina. O hábito é a camada de algodao que encobre os fenômenos e ameniza as rebarbas. Os fenômenos habituais não são "problemas". Para percebermos algo, é preciso que não percebamos algo outro.

 

      Um excurso à estética: para o famoso ciclo "feio belo bonito feio": todo ruído que penetra meu hábito passa a ser belo quando transformado em informação; a ser bonito, quando integrado aos hábitos nos quais moro; finalmente passa a ser feio, quando e expulso como refugo. Tal ciclo estético (de"aisthestai": perceber, vivenciar) ilumina a dialética interna da morada. Mas permite também distinguir entre morador e patriota. O patriota confunde pátria com morada. A pátria prende com mil fios misteriosos; fecha a entrada ao ruído, portanto, ao belo; o patriota, como todo morador, vivencia sua morada como sendo bonita; não tendo experiência com o " belo, confunde boniteza com beleza, julgando bela a pátria. O patriotismo é sintoma de enfermidade estética, porque transforma o hábito em algo misterioso.(...)